Sei que muitos de vocês não gostam dele, sei que o assunto é um tabu, mas peço que tirem um tempo ocioso para ler, mesmo a matéria sendo grande. Peço desculpas desde já se houver algum erro de português (eu apenas baixei a matéria da internet) ou algum erro de continuidade (eu cortei umas partes menos interessantes e não reli a matéria inteira):Canções para viver mais - por Marcelo Ferla
Matéria publicada na revista Rolling Stone n°18 - Março de 2008.
O quarto de Vinícius fica no meio do corredor, à esquerda. É lá que estão o violão, as partituras, a coleção refinada de CDs: Beatles, Radiohead, R.E.M., Flaming Lips, Tom Waits, Jeff Buckley, Strokes, Air, Beastie Boys, Billie Holliday, Cateano Veloso, Vitor Ramil, João Gilberto. As fileiras são desordenadas e alguns discos cobrem os demais, mas nem preciso revirá-los para ver melhor. Já deu para entender as referências dele. Ao lado da cama de solteiro, coberta por uma colcha do Grêmio, estão um pôster do vocalista do Radiohead, Thom Yorke, o mais brilhante artista da música pop do século 21, e outro do grupo escocês de pós-rock Mogwai, autografado. Na cabeceira da cama repousam, sobre um travesseiro, o terço da primeira comunhão e um CD que estampa na capa a foto de Vinícius - bonito e concentrado, com headphones e agasalho esportivo vermelho abotoado até se formar uma gola alta. "Yoñlu" é o que está grafado na capa do disquinho digital. O estúdio caseiro onde as 23 faixas do CD foram gravadas, entre 2004 e 2006, fica no meio do mesmo corredor, à direita. Abriga o aparelho de som do garoto, mais discos, uma guitarra, um teclado e o seu computador, um PC onde os sons foram registrados com um aplicativo básico de áudio, o Cool Edit Pro, e um microfone.
Os dois cômodos mais freqüentados por Vinícius Gageiro Marques, filho único da professora universitária e psicanalista Ana Maria Gageiro, e segundo do professor universitário Luiz Marques (Fernanda é do primeiro casamento), permanecem arrumados como se ele fosse chegar a qualquer momento do tradicional Colégio Rosário, onde cursava o ensino médio, para navegar na internet e fazer música, seu passatempo predileto. A rotina dele também englobava as visitas ao analista, ao cinema, às aulas de teclado e guitarrra e, sazonalmente, a uma academia de ginástica. "Manter tudo como era faz parte da elaboração da perda", explica Luiz Marques, que me recebeu em uma tarde incandescente do verão sulista, no final de dezembro de 2007, para falar do álbum póstumo de Yoñlu, assinatura virtual (de significado ignorado) de Vinícius, que abreviou a própria vida na tarde de 26 de julho de 2006, 36 dias antes de completar 17 anos, ali mesmo, no apartamento do bairro São Geraldo, zona norte de Porto Alegre, capital do Rio Grande do Sul.
Naquele dia, o garoto permaneceu on-line até lacrar o banheiro, onde morreu por intoxicação de monóxido de carbono. Seus últimos momentos foram acompanhados por internautas com quem ele se comunicava em um fórum virtual de suicídio. Alguns inclusive deram conselhos de como agir para executar o plano preconcebido - às 14h18, Yoñlu relatou que tinha duas grelhas queimando no banheiro, postou uma foto e perguntou: "Alguém, por favor, pode dizer quando posso entrar no banheiro e deitar?"; às 14h42, um internauta pergunta: "Como você está se virando? Espero que você consiga. Talvez você vá voltar tossindo"; às 14h44, Yoñlu retorna ao computador e reclama do calor: "O que eu devo vestir para tornar isso mais suportável? Pelo amor de Deus, alguém por favor me ajude"; às 15h11, um internauta alerta que a emissão do monóxido de carbono pode afetar os vizinhos; algumas horas depois, alguém escreve que o suicídio deve ter sido consumado, pois ele não entrou mais em contato.
Estamos na sala de estar que tem como cenário dezenas de quadros com fotografias tiradas por seu filho, um adolescente poliglota que se alfabetizou em francês (morou com a família em Paris dos 3 aos 7 anos), falava e escrevia em inglês fluente sem nunca ter freqüentado cursos específicos (aprendeu assistindo filmes na tevê e no cinema) e chegou a estudar galês, que se propunha a ensinar pela internet - "Tinha um aluno, um maluco", brinca o pai.
Seguidor da lomografia, Vinícius se dedicava a retratar o cotidiano de forma imprevisível desde os 13 anos, usando as cultuadas câmeras russas Lomo, que adquiria pela internet com a ajuda da mãe, com quem passava horas pesquisando pelo modelo a ser encomendado. "Ele era sério, até demais, e costumava se aprofundar em tudo antes de tomar qualquer atitude", lembra Ana Maria Gageiro, que me recebeu alguns dias depois de eu entrevistar seu marido, na mesma sala de estar onde ainda permanecia, em um cesto de revistas, uma publicação que estampava a manchete "Deus Existe?". Foi só depois de muita leitura, por exemplo, que o intelectualizado Vinícius (lia Kafka aos 12 anos) se decidiu em adquirir seu gato pêlo curto inglês "importado" do Rio de Janeiro. "Albert o seguia pela casa o tempo todo", recorda a mãe, com o gosto doce da lembrança e os olhos que miram o infinito. O bichano, que permaneceu escondido nas duas visitas que fiz ao seu lar, é tão sensível quanto era seu dono. "Desde cedo, eu percebia que a antena sensível do Vinícius para o mundo também era a fragilidade dele", revela Ana Maria, com conhecimento de causa: é doutora em psicologia pela Universidade Paris Diderot-Paris 7. Porque "a relação com o outro era um desafio quase intransponível", ele passou a fazer análise já aos 8 anos. A mãe era uma das poucas companheiras da curta adolescências do garoto que, até os 14 anos, preferia sair com o pai para ir ao cinema, uma grande paixão, e aos jogos do Grêmio.
Além de participar de grupos internacionais de fotografia, Vinícius desenhava muito bem (seus traçoes e colagens remetem a Stanley Donwood, designer do Radiohead) e tinha uma aptidão musical impressionante. Na teoria, demonstrava conhecimento e senso crítico em análises profundas sobre a música pop, sempre escritas em inglês e disponibilizadas na internet. Com 13 anos, fez uma compilação em CD, que enviou para amigos virtuais mundo afora, selecionando os artistas que julgava mais importantes para a história evolutiva do rock: Beatles ("A banda"), Mutantes ("a mais inovadora do Brasil"), David Bowie ("antena britânica"), Bob Dylan ("pioneiro"), Clash ("o grupo punk definitivo"), R.E.M. ("baliza pós-punk que apresenta o guitar pop como alternativa ao rock"), Smiths ("demarcaram o fim da new wave e o começo do guitar rock"), Jeff Buckley ("o mais importante letrista americano"), Oasis ("junto com o Blur, o sólido parâmetro do brit pop"), Super Furry Animals ("primeira banda pós-alternativa") e Radiohead ("para fechar com chave de ouro o ciclo iluminado").
Entre o lirismo poético e um salutar nonsense, as letras, escritas em inglês, ajudam a desvendar quem era Vinícius. Assuntos como depressão, indaqueação e suicídio estão espalhados entre as faixas selecionadas para o disco. "Katie Don't Be Depressed", uma pérola musical com guitarras quentes e letra polar, é sombria: "Katie não fique deprimida / é sério, quero dizer, que porra é essa? / um pensamento se lança pela sua cabeça / e vê você se contorcer e berrar / apesar de uma mão o segurar / apesar de ser jogado no chão"; "Humiliation", voz, violão e incapacidade de declarar uma paixão, é pungente: "Por que isso sempre acaba em humilhação para mim? (...) Eu vou dizer porque / Eu vou morrer"; a balada triste de palavras cuidadosamente mastigadas "Suicide Song", escrita um mês antes da data fatal, é assustadora: "Agora ela se foi como todo mundo que conheci / agora o meu suicídio está iluminado pelo pôr-do-sol / se quer saber a minha opinião, é bem triste / acho que não vou estar / presente para ver o seu rosto".
Ana Maria Gageiro, que estudou violão e tem boas noções musicais, sempre foi uma grande incentivadora da vocação do filho, não por acaso batizado em homenagem a um dos mais importantes letristas da bossa nova. "Casualmente, o último filme que ele assistiu foi o documentário sobre o Vinícius de Moraes", lembra a mãe, que apresentou ao garoto bandas como Queen e passou a gostar de artistas como R.E.M. e Los Hermanos por causa dele. "De vez em quando, sentávamos para tocar e cantar, e ele me pedia opinião sobre algumas das músicas que estava compondo."
Apesar de ter sido uma efetiva interlocutora musical, Ana confessou, antes mesmo de eu ligar o gravador, que não consegue ouvir o disco de Yoñlu - mais no final da entrevista admitiu que "aquilo ali pra mim é um inferno, né?", referindo-se ao quarto do garoto, que o marido preferiu manter arrumado, como nos velhos tempos de convivência a três.
É das brincadeiras cotidianas de Vinícius, o parceiro de programas adolescentes, que ela mais se ressente. "Sempre tive dificuldade de entrar nessa empolgação do CD", afirma Ana, referindo-se ao empenho de Luiz Marques em perpetuar a arte de Yoñlu. "Passei a encarar a morte de uma maneira completamente diferente e mergulhei no trabalho para tentar seguir adiante. Ou tu engata na vida, e vive mesmo com uma dor destas, mergulha em alguma coisa [longo silêncio]. Tudo termina em nada. Aprendi que tem que pegar leve. Porque, olha [suspiro profundo], de uma manhã para uma tarde, tudo muda. A vida escorre pelo dedo. Pega leve."
Até o fatídico 26 de julho de 2006, Luiz não conhecia nenhuma música, muito menos sabia da rede de interlocução do filho. Antes de se trancar no banheiro para abandonar a vida, Vinícius seguiu uma orientação do fórum virtual de suicídio que freqüentava há cerca de dois meses e redigiu uma carta de despedidda - para não incriminar os familiares. Escrita no computador, impressa e colocada junto do aviso "Cuidado - Monóxido de Carbono" afixado na porta, a carta explicava que aquilo não era uma contingência ou algo precipitado, pedia que sua vontade fosse respeitada porque a vida estava insuportável, indicava o endereço de seu blog, agradecia o apoio dos pais e lhes recomendava ouvir música quando ficassem tristes, exatamente como ele fazia. Embora não tenha sugerido que ouvissem os sons que ele mesmo compôs, deixou um CD com algumas de suas canções.
Ao mesmo tempo e no mesmo lugar onde buscava respostas para o suicídio, o computador de Vinícius (que estava sendo periciado pela Polícia Federal e pela Delegacia da Criança e do Adolescente), seu pai descobriu algumas das preciosidades sonoras que ele tinha armazenado - na grande maioria, canções próprias. Entre as poucas releituras, estão duas faixas que, por desconhecimento de Luiz Marques, não foram creditadas aos seus autores na primeira leva do CD: "Ricky", de John Frusciante, e "Little Kids", do Kings of Convenience. Muitas faixas vinham acompanhadas por comentário entusiasmados de internautas do mundo todo. O brasileiro de Gay Harbour (era como Yoñlu se referia a Porto Alegre), praticamente sem amigos reais, era um artista virtual definido como genial por ingleses, escoceses, belgas, canadenses, norte-americanos.
"Eu 'conheci' Vinícius em um fórum de videogames, por volta de 2001", conta por e-mail o DJ escocês de breakcore/nintendocore Sabrepulse, de 22 anos e um excelente currículo de apresentações pelo Reino Unido. "Logo começamos a falar no MSN sobre música, videogames, arte e ficamos bons amigos. Aí ele começou a me enviar arquivos de mp3 com suas gravações. Ele era muito talentoso. Na verdade, comecei a escrever música por causa dele, que me enviou uma faixa chamada 'Deskjet', gravada com sons de impressoras, e eu remixei usando um teclado e algumas batidas. Depois ele fez algumas cópias desse single e enviou uma para minha casa. 'Purple Haze', uma de minhas primeiras músicas, tem a voz dele na introdução. Em 2006, dediquei um de meus discos em sua memória, Chipbreak Wars, que tem um desenho do Vinícius na capa (e uma faixa chamda "XXX Is Dead"). Ainda penso muito nele."
Em seu blog, Lone Cannoneer (tirado do ar por um hacker em outubro de 2007, por decisão de Luiz Marques e em nome da preservação de familiares que apareciam fotos), Yoñlu deixou mais amostras de sua criatividade, capacidade crítica e um bom humor que, na medida em que crescia, se afastava do apartamento onde morava com os pais. Suas auto-entrevistas em forma de notícia são primorosas.
GAY HARBOUR, BRAZIL - O aprendiz de violão de 15 anos Yoñlu anunciou hoje que, apesar de praticar cotidianamente, está tocando cada vez pior. O jovem pupilo está estudando música há um ano numa escola a duas quadras de sua casa. "Bem, eu pratico mais do que uma hora por dia, mas não consigo melhorar". (...) Em um momento da entrevista, Yoñlu pegou seu violão e começou a tocar "Don't Think Twice, It's Alright", de Bob Dylan. Apesar de seu modo de cantar ser, de fato, bastante fiel ao de Dylan na versão original de Freewheelin'[1963], foi impossível não perceber que ele está tocando muito mal.
GAY HARBOUR, BRAZIL - Inspirado na recente decisão de Jason Kottke de parar de trabalhar para se dedicar ao blogging, o autor do bem-sucedido blog Lone Cannoneer, Yoñlu, está pensando em fazer o mesmo. "Bloguear o tempo todo tem sido um sonho que me acompanha há tempos", confessou o jovem brasileiro. (...) ele também estava negociando com o Blogger.com por mais banda, desde que o grande número de acessos que tem recebido diariamente começou a causar quedas no servidor nas horas de pico. (...) "Milhares de pessoas param diariamente para ler minhas novas resenhas sobre música no Lone Cannoneer, dividir suas opiniões ou simplesmente checar as novas animações. Eu não posso tirar isso delas."
Acabei descobrindo, por acaso, Flávia Carpes, ex-colega de Vinícius no Colégio Rosário e uma das 37 integrantes da comunidade "Pipoca eh o cara!!!!", do Orkut. "Flávia Carpes me contou um pouco sobre ele e disse que estavam na mesma classe, mas que não eram muito próximos", lembra Marcelo. "Quando citei as músicas, ela se mostrou surpresa com uma em especial. Depois ela ligou para uma colega para contar sobre esta música e a meu respeito. Foi assim que eu conheci (virtualmente) a Luana."
"A coisa que eu mais gosto é de falar do Vinícius", diz Luana Groch, que encontrei (pessoalmente) em um sábado pela manhã em um típico ponto-de-encontro porto-alegrense - um café, em pleno verão - para lembrar do mais tenebroso inverno de sua curta existência. Foi para ela que Vinícius escreveu "Mecânica Celeste Aplicada", nome definitivo para a música inicialmente batizada como "Luana". Ela mudou de Erechim para Porto Alegre em 2006, com a intenção de cursar o terceiro ano e se preparar melhor para o vestibular. "Entrei na turma 303 e todo o pessoal foi muito receptivo, mas logo o Vinícius me chamou a atenção, sempre contando suas piadinhas", enfatiza a garota que contrasta o ar melancólico com a disposição para discorrer sobre os bons momentos de um passado recente. "Na sala de aula, ele era muito extrovertido, de um humor inteligente, e isso me atrai bastante nas pessoas. Já no primeiro dia de aula, fui falar com ele. Depois, no Orkut, ele veio perguntar: 'Por que tu veio falar comigo?', como se tudo aquilo que ele fazia não recebesse a atenção que merecia. Mas não era verdade, todo mundo amava ele no colégio! Ele não tinha amigos assim, de viver junto, ir às festas, viagens, mas todo mundo amava ele".
Em seguida, Luana aprofunda a análise e começa a dar pistas. "Na verdade, ninguém conhecia o Vinícius, todo mundo conhecia o Pipoca. Era o aluno mais popular da sala de aula e o mais inteligente também. Ele não estudava, entregava as provas em dez minutos e só tirava 10, vivia tirando onda, até com os professores. Uma vez, ele resolveu entrar em um concurso de top model que fizeram no colégio, só para avacalhar!", diverte-se a colega que sentava longe de Pipoca e não conversava muito com ele na escola, mas gastava muitos pulsos telefônicos com Vinícius, três vezes ao dia. "Sabe aquela pessoa extremamente agradável de conversar?", dispara Luana. "Ele era sensível, parece que a gente se conhecia há muito tempo".
A afinação da dupla se estendia até ao guarda-roupa: "O Vinícius tinha um casaco igual ao meu, da Puma, preto, e a gente sempre se vestia igual. Aí, um dia, eu resolvi ir de branco na aula, eu nunca usava branco! No outro dia, claro que ele foi de branco também, a gente se olhava e ria muito, foi muito engraçado!", narra Luana, como se estivesse descrevendo o enredo de uma comédia romântica que assistiu em um cinema de calçada.
Confidente, conselheiro, companheiro, Vinícius mostrava algumas das músicas que estava compondo para a melhor amiga. "Eu achava o máximo quando ele me pedia opinião. Uma vez, ele gravou uma música e estava com vergonha de apresentar, aí a gente cantou junto. Todo mundo gostou, até o professor. E ele ficou tri feliz", arremata orgulhosa a guria, arrastando seu sotaque gaúcho. "Depois ele me falou que estava fazendo uma música para mim, ficou um tempão produzindo". O grau de amizade e confiança era tamanho que "quando ele estava achando muito chato ir no analista, me pedia para ligar no meio da consulta, ou mandar mensagens de texto, para poder inventar uma desculpa e sair", revela a garota. "Um dia ele me contou que começou a falar muito de mim e o analista chegou a pensar que eu fosse imaginária, porque meu nome é a soma das primeiras sílabas dos nomes dos pais dele".
Protagonistas de uma love story adolescente, sem nenhuma pressa ou necessidade de entrar no mundo adulto e transformar a amizade em namoro (por mais adultos que fossem), Vinícius e Luana começaram a ir juntos ao cinema e até faziam planos futuros. "Para o verão deste ano, tínhamos programado uma viagem para a França", recorda a menina enquanto mordisca os lábios, mexe e remexe nos cabelos.
Subitamente, ela desmonta a atmosfera etérea que exala e baixa o tom de voz. "Com o passar do tempo, fui vendo que o comportamento dele na sala de aula era fachada, ele não queria ser daquele jeito. Vinícius dizia que não conseguia passar o que sentia, a não ser quando estava cantando e escrevendo. Ele falava muito sobre depressão, às vezes tinha que ir embora no meio da aula porque não agüentava a pressão. No começo, ainda tinha forças, falava que queria se tratar, e eu ajudava, dizia que ele ia conseguir. Mas, às vezes, ele dizia: 'Hoje eu quase cometi uma loucura'. O Vinícius era genial, mas achava que qualquer pessoa era melhor do que ele. Era bonito, mas se achava feio, sempre falava isso. Se achava insuportável!" - ao estudar a depressão que levou à morte do filho, Ana Maria Gageiro cita como provável causa a fobia dismórfica: eventualmente, Vinícius tinha a impressão de que seu corpo iria se dissolver; "Ás vezes ele me dizia que achava que seu corpo estava aos pedaços", conta sua mãe.
Vinícius nunca deixou Luana ir até a sua casa nem deu explicações plausíveis para essa conduta. Mas as inúmeras revelações contidas em seu blog e em fóruns da internet explicam por que ele jamais revelou, nem para a melhor amiga, da existência desses. "Eu achava que ele não me escondia nada, fiquei muito chateada quando soube do blog e dos fóruns".
Na tarde de 23 de maio de 2006, no rllmukforum, Yoñlu agradeceu os cumprimentos recebidos por diversas de suas músicas e completou: "Hoje eu voltei para casa pensando em suicídio, mas depois de ler todas estas palavras gentis resolvi adiar". à noite, ao comentar a canção "I Know What It's Like", que anexou para ser ouvida, contou que "é [uma música] muito popular entre os colegas, incluindo minha ex-futura-namorada"; sobre "Untitled", revelou que é um dos tantos sons que fez para a garota que ama; de "Suicide Song", contou que foi "escrita e gravada rapidamente durante um momento depressivo" e destacou "como é bacana ouvir a voz de um suicida".
Em um relato posterior a uma ida ao cinema com Luana, Yoñlu descreveu seu próprio comportamento como péssimo, contou que sentia estar se afastando de mais uma pessoa que amava e pediu que rapidamente alguém dissesse algo gentil sobre suas músicas, antes que decidisse se matar. No dia 4 de junho, ele postou no fórum a música que fez para a amiga (depois de mostrar para sua mãe, sem dizer para quem era). Recebeu diversos elogios, como de costume. Dia 8, revelou que ela gostou da música, e enfatizou que não fez a canção para conquistá-la, mas para amenizar a má impressão que, segundo seu julgamento, a garota teria dele - àquela altura, ele já tinha declarado em seu blog que lhe causara muita surpresa o fato de ter se apaixonado por alguém, e estava entrando numa fase depressiva que culminou com textos nos quais justificava o suicídio, que podem ser sintetizados nas frases "estou perdendo minha melhor amiga para meus próprios demônios" e "eu simplesmente não consigo falar com as pessoas, ou melhor, consigo, mas não sem corromper minha identidade e me tornar alguém que eu odeio".
No final de julho de 2006, Ana Maria Gageiro encontrou a letra de "Suicide Song" sobre a cama de seu filho. "Me apavorei, e vi que ele não estava bem", recorda a professora e psicanalista. "Chamei ele para conversar e ele disse 'que era só uma música'. Eu disse: 'Não é só uma música, é uma música que fala de suicídio. Eu vejo que tu não tá bem'. Mas ele estava sempre muito decidido, as coisas batiam e voltavam, ele estava se isolando cada vez mais."
No mesmo período, Luana relata que Vinícius "começou a quebrar tudo que a gente tinha, não queria mais falar comigo, se isolou muito na sala (ia de headphones para as aulas), parou de fazer piadinhas". Alertado pelo analista, Mário Corso, de que seu paciente estava falando em se matar, Luiz Marques abriu a barra de acessos do computador do filho e descobriu que ele freqüentava um grupo virtual de suicídio - chegou a pegar um diálogo do grupo no qual Yoñlu sugeria para uma norte-americana com uma espingarda apontada para a cabeça que desistisse e fosse procurar um analista. "O Luiz imprimiu os diálogos e sentamos os três para conversar, aqui mesmo, nesta sala", revela Ana Maria. "A gente dizia que agora não era só uma música, havia conversas, mas ele argumentava que, se aquela era para ser uma solução, teria que ser e pronto. Ele foi muito categórico naquele dia". A partir da conversa, os pais não o deixaram só um minuto sequer. "Mas aí ele começou a simular uma melhora, levava até o violão para a escola. Até que, já nas férias de julho, ele inventou que faria um churrasco para alguns colegas do colégio que não tinham ido viajar" - com a desculpa de que nunca recebia amigos em casa e em nome da privacidade, pediu aos pais, professores em férias, que os deixassem a sós.
A reunião de colegas para um churrasco na cobertura, dia 26 de julho de 2006, soava tão salutar quanto o aniversário de 12 anos de Vinícius, que fez do Kiss, então sua banda predileta, o motivo da festa - ele e três vizinhos passaram o dia inteiro maquiados com produtos de um kit adquirido pela internet; o aniversiariante encarnou Paul Stanley. "No dia da morte, ele simulou tudo", recorda Ana Maria. "Foi comigo comprar comida no supermercado, me fez arrumar a mesa antes de eu sair, dizia que tinha dúvida de quantas pessoas iriam. Não vi tristeza, depressão, pavor. Lembro dele me olhando em êxtase, em paz. Eu tinha falado para ele que seria desesperador pensar em perdê-lo. Mas, para o Vinícius, estar vivo ou morto era um detalhe. Ele não usou nenhuma droga, não bebeu nada - dizia que se bebesse apenas acrescentaria mais um problema aos muitos que já tinha. Foi a convicção que deixou ele tão calmo."
No último post de seu blog, Yoñlu publicou uma foto em que está de costas entreolhando para a câmera, parecendo assustado, aparentemente numa cela. Um clique no alt-text revela a frase "É assim que eu quero ser lembrado". "A foto é de uma festa de São João no Colégio Maria Goretti, onde ele fez o ensino fundamental", revela Luiz Marques. "Ele parece estar numa prisão, e não à toa escreveu uma música chamada 'Prison', que não entrou no disco. A sociabilidade que a escola impõe, para ele, sempre foi um pesadelo".
"Eu falei com ele naquela manhã, por MSN", conta Luana, que estava de férias em Erechim, com a família, na semana em que Vinícius tirou a própria vida. Ela escreveu: "Não falta muito para a gente se ver. Estou com saudade". Ele respondeu: "Também estou".
Um ano e meio, dois capuccinos e muitas revelações depois, era eu que estava sentado numa mesa de café diante da garota que "tem o dom de deslocar assim / a lua de Netuno no ar", como Yoñlu a descreveu em "Mecânica Celeste Aplicada", sua única canção com letra em português, faixa 20 do CD cujos eventuais lucros serão investidos em um site dedicado à brilhante produção artística do garoto que produziu muito para quem viveu tão pouco, mas ainda assim fez muito pouco para quem demonstrou tanto talento. Yoñlu é um disco que deveria ser apenas um cartão-de-visitas, mas se transformou em testamento, é a celebração de uma vida com vocação para banquete que ficou no aperitivo, é uma amostra de som e poesia dos beijos que Yoñlu não deu, dos sonhos que não realizou, das angústias que não superou, de sua paixão pela arte e especialmente pela música, como deixou registrado na carta derradeira escrita para os pais, afixada na porta do banheiro, em parte reproduzida no encarte do álbum póstumo:
"Eu acredito que a cadência e a harmonia certas no momento certo podem despertar qualquer sentimento, inclusive o de felicidade nos momentos mais sombrios".